Considerações sobre a ilegalidade do Decreto 9.101/2017
- GDI Advogados
- 19 de fev. de 2020
- 6 min de leitura
INTRODUÇÃO
Em 20 de julho de 2017, o Poder Executivo editou o Decreto 9.101/2017, que alterou os Decretos 5.059/2004 e 6.573/2008, os quais, por sua vez, reduziam as alíquotas das Contribuições do PIS e da COFINS incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool.
Forçoso recordar que a autorização ao Poder Executivo para a prática de tais atos encontra-se na Lei n. 10.865/2004, que instituiu as mencionadas contribuições sobre a importação de bens e serviços. Dessa forma, especificamente sobre a gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool, por meio de técnica legislativa, a referida Lei instituiu coeficientes redutores das alíquotas incidentes e, sobre esses coeficientes, delegou competência ao Poder Executivo.
Desde a edição do Decreto, inúmeros procedimentos judiciais visando sua não aplicação foram distribuídos e liminares foram concedidas e revogadas. Dentre as mais recentes tem-se decisão proferida em 24/08/2017, pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul que concedeu medida liminar em Ação Popular movida pelo presidente da OAB/RS para suspender os efeitos do Decreto (majoração das alíquotas) e o ajuizamento pelo Conselho Federal da OAB de ação civil pública em 25/08/2017.
Dentre os argumentos trazidos nas ações estão a necessidade de observância da anterioridade nonagesimal para o aumento das contribuições e a o reconhecimento da ilegalidade do Decreto. Tais argumentos são reproduzidos em praticamente todas as controvérsias acerca do tema.
O presente comentário visa, apenas, elucidar o último argumento – a ilegalidade do Decreto – que nos parece equivocado em seus fundamentos jurídicos e acarreta, em caso de deferimento, maior onerosidade ao contribuinte.
A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Crucial, para o deslinde do presente comentário, traçar alguns comentários acerca do Sistema Constitucional Tributário brasileiro, principalmente no que tange à competência legislativa tributária.
Sobre a competência legislativa tributária, veja-se que se trata de “parcela do poder que pode ser exercido pelo órgão [jurídico, criado a partir da Constituição] dentro do campo de sua função, cujos limites foram regrados pelas regras jurídicas que o criaram[1]”.
Trata-se de um sistema escalonado no qual cada órgão de menor grau jurisdicional pode criar, dentro de sua competência, órgãos jurídicos com menor parcela de poder (leia-se, competência) e cuja validade dos seus atos encontra-se mormente na obediência daquilo que lhe foi garantido como competência específica[2].
Importante notar que “pela atribuição de competência divide-se o próprio poder de instituir e cobrar tributos. Entregam-se à União, aos Estados, ao Distritos Federal e aos Municípios parcelas do próprio poder de tributar[3]”.
Por meio da competência, concedida originalmente pelo produto jurídico da Assembleia Constituinte – a Constituição – os órgãos criados agem através da prática de atos administrativos (Executivo), da emissão de sentenças (Judiciário) ou da criação de normas (Legislativo).
Em específico, a competência tributária restringe-se ao “Poder Legislativo – e apenas ele – que, em nosso ordenamento jurídico, está credenciado a instituir e criar tributos [já que] a Constituição, por assim dizer, delimitou o campo tributável[4]”.
Nosso ordenamento jurídico, portanto, estabeleceu que, como critério de validade das normas, os atos legislativos (bem como os executivos ou judiciários) respeitem tanto “a regra jurídica criada por aquele único órgão legislativo de primeiro grau [quanto a] regra jurídica criada por órgão de grau inferior à assembleia constituinte, porém superior ao grau do próprio órgão cujo ato foi arguido de ilegalidade[5]”.
Conclui-se que o ato praticado em desacordo com a Constituição encontra-se eivado de inconstitucionalidade imediata e o ato praticado em desacordo com norma inferior à Constituição e superior à própria competência do órgão que o criou se situa como inconstitucionalidade mediata (ilegalidade)[6].
DA LEGALIDADE DO DECRETO E DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 23, § 5º DA LEI 10.865/2004
Pela conceituação exposta, para averiguar a existência de suposta ilegalidade do Decreto 9.101/2017, necessário analisar, portanto, se tal ato extrapolou a órbita de sua competência.
Para tanto, verifica-se a constitucionalidade imediata da Lei que instituiu o tributo e, após, a constitucionalidade mediata (legalidade) do Decreto perante a Lei que lhe delegou competência.
O resultado de tal análise é que o Decreto não se encontra, em quaisquer de suas disposições, em desacordo com o Art. 23, § 5º da Lei 10.865/2004, fonte de sua competência normativa, in verbis:
Art. 23, § 5º Fica o Poder Executivo autorizado a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas neste artigo, os quais poderão ser alterados, para mais ou para menos, ou extintos, em relação aos produtos ou sua utilização, a qualquer tempo.
Nesse sentido, a Lei autoriza o Poder Executivo a editar Decreto, que é fonte formal secundária do direito brasileiro, e, portanto, “subordinado à lei [não podendo] ampliá-la ou reduzi-la, modificando de qualquer forma o conteúdo dos comandos que regulamenta. Não lhe é dado, por conseguinte, inovar a ordem jurídica[7]”. E, reforce-se, não inovou.
Isso porque o Decreto regulamenta as relações jurídicas das Contribuições Sociais nos exatos termos da competência designada a ele, por meio da Lei 10.865/2004, alterando os coeficientes de redução das alíquotas de tais tributos.
A norma, portanto, não se encontra eivada de inconstitucionalidade mediata (ilegalidade) do Decreto em relação à Lei que lhe instituiu. A violação à legalidade estrita do Direito Tributário brasileiro não está, dessa forma, no Decreto, mas, sim, na norma regulamentada pelo Poder Legislativo que excedeu sua competência, originada na Constituição Federal, a qual prescreve a legalidade tributária nos Arts. 5º, II, e 150, I, dispositivos esses ainda mais aprofundados no Art. 97 do Código Tributário Nacional.
Isso porque, através do Art. 23, § 5º da Lei n. 10.865/2004, o Legislativo delegou competência para instituição ou majoração de tributos ao Poder Executivo, sem que, dentro da sua própria órbita de competência estivesse o poder para tanto. Portanto, delegou poder que não era seu para delegar.
Note-se que, nos casos em que o Legislativo possui poder para delegar tal competência, esse poder encontra-se expresso na Constituição Federal, tais como nos Arts. 153 § 1º- II, IE, IPI e IOF – e 177, §4º, I, “b” – CIDE Combustíveis.
Se, portanto, as Contribuições do PIS e da COFINS incidentes sobre os produtos supramencionados não se encontram nesses dispositivos ou em outro permissivo constitucional de delegação, não poderia o Poder Legislativo fazê-lo, e, fazendo-o, recaiu em vício de inconstitucionalidade imediata, já que seu ato normativo, especificamente o Art. 23, § 5º da Lei n. 10.865/2004 extrapola os limites constitucionais do poder de tributar.
Ocorre que o resultado prático da declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo acarreta na invalidade de todo e qualquer Decreto editado em seu bojo.
Isto porque, assim como o Decreto 9.101/2017, os Decretos 5.059/2004 e 6.573/2008, também têm fundamento em norma inconstitucional, e, portanto, “nunca [chegaram] a ter juridicidade (nasceu não-válida, é lei natimorta, nunca assumiu a natureza de regra jurídica)[8]”.
Dessa forma, com a declaração de ilegalidade dos referidos Decretos, as alíquotas aplicáveis seriam aquelas constantes no Art. 8º da Lei n. 10.865/2004, sem os coeficientes redutores, ou seja, maiores do que as alíquotas vigentes nos Decretos.
Logo, a declaração de inconstitucionalidade do Art. 23, § 5º da Lei n. 10.865/2004 traria situação mais gravosa ao contribuinte. Em análise de caso semelhante, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela não declaração de inconstitucionalidade (mediata e imediata) de determinado regramento em virtude de que o resultado seria, precisamente, a maior onerosidade para o contribuinte, nos seguintes termos:
TRIBUTÁRIO. TAXA. CLASSIFICAÇÃO DE PRODUTOS VEGETAIS. DECRETO-LEI Nº 1.899/81. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. 1. Caso em que o êxito da tese deduzida pelo recorrente implica a configuração de situação mais gravosa ao contribuinte, razão pela qual não há interesse na tese de inconstitucionalidade que anima o recurso extraordinário. 2. Recurso improvido.
(RE 299731, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 05/10/2004, DJ 28-10-2004 PP-00051 EMENT VOL-02170-02 PP-00248 RET v. 7, n. 41, 2005, p. 30-33) [9]
Do voto da Relatora, Ministra Ellen Gracie, destaca-se o seguinte trecho:
No caso, é fato incontroverso que a aludida portaria interministerial fixou a alíquota da exação em patamar bastante inferior ao que estabelecido no Decreto-lei nº 1.899/81. Sendo a delegação constante do Art. 8º do referido Decreto-lei o objeto do alegado vício de inconstitucionalidade, o êxito da tese de ofensa ao princípio da legalidade implicaria, no caso concreto, na remanescência do valor estabelecido no art. 2º, III, “a” da norma delegante, em situação mais gravosa ao recorrente. Assim, atentando-se aos limites inerentes ao controle difuso de constitucionalidade das normas, tenho por ausente o interesse da arguição de inconstitucionalidade que anima o presente recurso extraordinário.
Entendimento aplicável, portanto, ao caso em comento, vez que o aumento das alíquotas do PIS e da COFINS por meio de Decreto regulamentador dos coeficientes de redução remonta, precisamente, ao precedente mencionado.
CONCLUSÃO
Assim, apreciando-se o caso apenas em sua juridicidade, o Art. 23 § 5º da Lei n. 10.865/2004, bem como quaisquer outros atos que deleguem competência sem poder para tanto, devem ser considerados inconstitucionais.
No entanto, em virtude de tal declaração constituir situação mais onerosa ao contribuinte, tais alegações não devem prosperar, ainda que juridicamente viáveis.
Caberia, dessa forma, ao Poder Legislativo corrigir o procedimento para fixação de alíquotas (ou coeficientes redutores dessas) sem prejuízo aos contribuintes, neutralizando a situação e primando pela segurança jurídica daqueles que regularmente recolheram as Contribuições em conformidade com os aludidos Decretos.
[1] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 6ª Edição, 2013. p. 227.
[2] ______, p. 228.
[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 28ª Edição, 2007. p. 60.
[4] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 28ª Edição, 2012. p. 574.
[5] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 6ª Edição, 2013. p. 229.
[6] ______, p. 229.
[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 41.
[8] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 6ª Edição, 2013. p. 229
[9] Entendimento replicado no RE 314631 AgR, Relator(a): Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013.
Bruno Dutra Iankowski é Sócio das Áreas de Direito Tributário, Contratos e Negócios e Investimentos.
E-mail: bruno.iankowski@gdilaw.com.br
Comments